segunda-feira, julho 05, 2010

Efeito da vida moderna

Faz mal Faz nada
Matt Richtel
O Estado de São Paulo - 5 jul 2010

Conheça os Campbell, uma família que exemplifica quanto a dependência digital pode afastar um do outro; a partir da história deles, pesquisadores discutem se o uso de equipamentos eletrônicos e o hábito de fazer muitas coisas simultaneamente deixam mesmo as pessoas mais distraídas - ou se isso é tudo exagero

Quando um dos mais importantes e-mails da vida de Kord Campbell chegou, ele não viu. Só o leu 12 dias mais tarde, enquanto fazia uma limpa na caixa de entrada: uma companhia queria comprar sua startup de internet. “É um absurdo não prestar atenção numa mensagem como essa, mas eu fiz isso”, diz ele.

Ele conseguiu salvar o negócio de US$ 1,3 milhão. E tenta aliviar os efeitos do dilúvio de dados. Mas mesmo quando desliga seus equipamentos, sente falta do estímulo proporcionado por eles. Lidar com o fluxo constante de informações pode fazer que as pessoas mudem a forma de pensar e se comportar. O volume de dados recebidos desperta o impulso primitivo de responder a oportunidades ou ameaças imediatas. O estímulo provoca excitação – uma verdadeira injeção de dopamina – que pode viciar. Na falta dela, o tédio.

As distrações que a dependência provoca podem ter consequências mortais, como quando motoristas dirigem usando o celular. E para milhões de pessoas como Campbell, esses impulsos reduzem a criatividade e a reflexão, interrompendo o trabalho e prejudicando a vida familiar.

Embora diversas pessoas afirmem que muitas tarefas ao mesmo tempo as tornam mais produtivas, as pesquisas mostram o oposto: quem faz muitas coisas ao mesmo tempo tem mais dificuldade de concentração e de excluir as informações irrelevantes, além de sofrer mais de estresse. Os cientistas estão descobrindo que mesmo depois de uma pessoa terminar as tarefas, o pensamento fragmentado e a falta de concentração persistem.

“A tecnologia está reeducando o cérebro”, diz Nora Volkow, diretora do Instituto Nacional de Dependência das Drogas e uma das maiores especialistas mundiais em distúrbios do cérebro. Ela e outros pesquisadores comparam a atração do estímulo digital à da comida e do sexo: essenciais, porém contraproducentes quando em excesso.

O consumo de informações, desde e-mails a TV, explodiu, para melhor ou para pior. Em 2008, as pessoas consumiram diariamente três vezes mais informações do que em 1960. E agora a atenção se desloca o tempo todo de um ponto a outro. Os usuários de computadores mudam de janelas ou verificam e-mails ou outros programas cerca de 37 vezes por hora, mostra uma nova pesquisa. “Estamos expondo nosso cérebro a um ambiente e pedindo que faça coisas para as quais não está necessariamente evoluído o bastante”, diz Adam Gazzaley, neurocientista da Universidade da Califórnia.

Campbell, 43 anos, faz um uso mais intenso de tecnologia do que a maioria das pessoas. Mas os conflitos dele e de sua família tipificam o que muitos experimentam – e o que outros tantos ainda vão experimentar.

A família Campbell mudou-se recentemente para a Califórnia. A vida do dono da casa gira em torno de computadores. Ele dorme com um laptop ou um iPhone sobre o peito e, quando acorda, se conecta imediatamente. Ele e a esposa, Brenda, de 39 anos, vão para a cozinha, onde ela prepara o café assistindo à TV no canto da tela do computador, enquanto ele usa o resto do monitor para checar e-mails.

O filho de 16 anos, Connor, ganhou recentemente os primeiros preservativos de presente. Os pais esperam que o sexo o tire da frente do computador. A filha de 8 anos, Lily, que tem um iPod Touch, um aparelho de DVD portátil e um laptop, acha que o pai prefere a tecnologia à família.

A mãe, Brenda, relembra as férias da família. Um dia antes da viagem, saiu o iPad, e Campbell comprou um. Resultado: “na primeira noite das férias, não saímos para jantar. Ficamos sentados diante dos nossos aparelhos”. Ela faz a contabilidade da companhia do marido, cuida da casa e trabalha na biblioteca da escola. Recentemente, estava assando biscoitos quando o telefone tocou. Ela respondeu com um SMS, depois se perdeu no Facebook e os biscoitos queimaram. Começou nova fornada, mas ouviu o telefone de novo, novamente ficou ocupada enviando mensagens. E eles queimaram de novo. Como os ingredientes tinham acabado, ela saiu e comprou biscoitos prontos.

Desde cedo. Quando tinha 9 anos e morava em Oklahoma City, Campbell ganhou dos pais um videogame Pong. Depois veio uma série de consoles e PCs, que ele aprendeu a programar. No colegial, administrava, ao mesmo tempo, os computadores, o basquete e o namoro com Brenda. Deixou o colégio para ajudar nos negócios da família, depois montou uma firma de cortar grama. À noite, lia, jogava videogame, namorava e, segundo Brenda, “falava bem mais”.

Em 1996, criou um bem-sucedido provedor de internet. Então montou a empresa que vendeu por US$ 1,3 milhão, em 2003.

Campbell festeja o ritmo acelerado da vida moderna, mas, ao mesmo tempo, fantasia sobre a vida na época dos pioneiros, quando o ritmo era mais lento: “Não consigo guardar tudo na cabeça”. Não surpreende: as pessoas consomem hoje em média 12 horas de informações por dia. Uma hora diante da internet e da TV simultaneamente vale por duas. Em 1960, eram cinco horas, dizem pesquisadores da Universidade da Califórnia. Os usuários de computadores visitam em média 40 sites por dia, segundo estudo da RescueTime, que faz ferramentas para administrar o tempo.

Multitarefa. Quando chegou a Stanford, em 2004, Eyal Ophir decidiu investigar se a dedicação intensiva a múltiplas atividades ao mesmo tempo poderia mudar uma característica do cérebro considerada imutável: somos capazes de processar um único fluxo de informações de cada vez. Mas Ophir, primeiro como estudante e depois como pesquisador, achou que as pessoas que se dedicam a tarefas múltiplas poderiam reaprender a lidar com a carga simultânea.

Em um teste criado por ele, havia dois grupos: um de pessoas que conseguiam fazer tarefas múltiplas (a partir de respostas a perguntas sobre como usavam a tecnologia) e outro de pessoas que nem tentavam. A todos, foi mostrada rapidamente uma imagem com retângulos vermelhos. Depois, outra imagem semelhante. Todos tiveram de dizer se os retângulos haviam mudado de posição. Era bem simples. Depois foram acrescentados, à mesma imagem, retângulos azuis. Os pesquisadores pediram o todos que ignorassem os azuis.

As pessoas multitarefas foram mal, bem pior do que as outras, ao apontar variações nos vermelhos. Isso porque não conseguiram ignorar os azuis – a informação irrelevante. Levaram mais tempo para passar de uma tarefa a outra e foram menos eficientes na solução de problemas.

Em outro teste, o primeiro grupo tendia a buscar novas informações em vez de aceitar um prêmio por trabalhar com dados mais antigos e valiosos. Segundo os pesquisadores, isso aponta para uma interessante dinâmica: as pessoas multitarefa parecem mais sensíveis ao novo.

Os resultados ilustram também um conflito antigo, que a tecnologia pode estar intensificando. Uma parte do cérebro atua como uma torre de controle, ajudando a pessoa a se concentrar e a estabelecer prioridades. Partes mais primitivas, como as que processam a visão e o som, exigem que ele preste atenção a novas informações, bombardeando a torre de controle quando estimuladas. Para os pesquisadores, trata-se de uma evolução da pressão desse bombardeio no cérebro. A parte inferior do cérebro alerta o ser humano do perigo, como a proximidade de um leão, deixando de lado metas como a construção de um abrigo. Hoje, o leão é um e-mail que chegou; e o abrigo, a redação de um projeto de negócios ou o cuidado com a família.

“Há um grande e crescente número de pessoas que acham que a menor indicação de que pode estar chegando algo interessante já é um chamariz. Eles não conseguem ignorá-lo”, disse Clifford Nass, professor de comunicação em Stanford. Para ele, os estudos realizados em Stanford são importantes porque mostram os efeitos persistentes da realização de múltiplas tarefas: “O assustador no caso de pessoas como Campbell é que não conseguem desligar o multitarefa mesmo quando estão offline”.

Mas essas pessoas são assim por causa do digital, ou são mais propensas à distração e teriam problemas de se concentrar em qualquer época? A pergunta é proposta por Melina Uncapher, neurobióloga da equipe de Stanford. Mas ela mesma acrescentou que a ideia de que a sobrecarga de informações provoca distração é respaldada por um número crescente de pesquisas. Um estudo da Universidade da Califórnia, em Irvine, mostrou que as pessoas que são interrompidas pela chegada de e-mails relataram aumento significativo do estresse em comparação às que continuam concentradas.

Uma pesquisa preliminar mostra que há, sim, pessoas que lidam bem com múltiplos fluxos de informações: menos de 3% da população, segundo cientistas da Universidade de Utah.

Outra pesquisa mostra que o uso do computador é benéfico do ponto de vista neurológico. Em estudos realizados por imagem, o dr. Small observou que os usuários de internet têm maior atividade cerebral em comparação aos que não usam, o que sugere que estão intensificando seus circuitos neurais.

Há hoje um intenso debate entre cientistas sobre se a influência do digital no cérebro é assim tão negativa e se é, de fato, significativa. “A conclusão é que o cérebro se liga para adaptar-se”, diz Steven Yantis, professor de ciências do cérebro na Universidade Johns Hopkins. “Incontestavelmente a reeducação ocorre o tempo todo.” Mas ele disse que é muito cedo ainda para saber se as mudanças provocadas pela tecnologia são diferentes de outras que ocorreram no passado.

Ophir hesita em definir essas mudanças como boas ou más, embora esteja preocupado com as consequências disso na capacidade de análise e de criatividade. E ele não está só preocupado com os outros. Pouco depois de chegar a Stanford, um professor veio até ele para agradecer por ser o único estudante da classe que prestava total atenção na aula. Mas recentemente ele comprou um iPhone e notou que fica tentado a usá-lo até quando está brincando com a filha. “A mídia está mudando meu comportamento. Sinto um estímulo interno que diz: cheque o e-mail. Trabalho para acalmá-lo”. Campbell nem tenta. Ou não consegue mais./TRADUÇÃO ANA CAPOVILLA